O Respeito pelo Direito à Imagem da Pessoa Retratada (5) – Exceções à Necessidade de Consentimento
[Contribuição de Mário Serra Pereira]
Como foi anteriormente referido, o artigo 79.º do Código Civil estabelece um conjunto de regras relativas ao direito à imagem de uma pessoa, começando por fixar um princípio geral de utilização apenas mediante consentimento (n.º 1 do artigo)[1]. Porém, o n.º 2 do mesmo artigo prevê um conjunto de situações de exceção em que o retrato de alguém poderá ser utilizado sem necessidade do seu consentimento: «não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente».
Importa salientar desde já que as circunstâncias previstas neste preceito variam de caso para caso, ficando – no limite – a sua circunscrição ao critério do julgador. Situações aparentemente iguais podem ter apreciações diferentes devido ao circunstancialismo que em concreto envolveu aquela imagem. Recorde-se o que foi dito a propósito do consentimento tácito e da envolvente que foi criada em torno da captação de imagens na piscina do espaço de fitness – foi todo o contexto criado para aquela sessão fotográfica que fez a diferença entre aquelas imagens (que podem ser utilizadas comercialmente) e outras imagens que possam ser captadas por um fotógrafo numa piscina que frequente legitimamente (que tipicamente não as poderá utilizar sem consentimento).
Notoriedade e exercício de certos cargos
Em matéria de direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, o artigo 80.º do Código Civil estabelece que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem, salientando, porém, que a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas[2]. Constata-se a dificuldade de delimitação do conceito de vida privada, variando a extensão da reserva de acordo com o caso concreto e da maior ou menor notoriedade das pessoas envolvidas, ficando a sua concretização ao critério do julgador.
O Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República proferiu, em 2003, um parecer a respeito – entre outras questões – da captação de imagens de todos os envolvidos no designado Processo Casa Pia[3], desde os arguidos, aos magistrados e todos aqueles que de alguma forma estiveram envolvidos com o processo.
A propósito desta questão, salienta o Conselho que «a notoriedade de certas pessoas (a condição das pessoas) reduz o objeto do direito de reserva à intimidade da vida privada. A relevância social de certas pessoas, pelas funções que desempenhem, pela profissão que exercem, pela celebridade que alcançaram ou pela proeminência social que atingiram, pode justificar que factos ou circunstâncias da vida privada e peculiaridades que esta apresente sejam transmitidos ao conhecimento do público por exigências de interesse público. Em tais casos, a coletividade tem interesse, que deve ser considerado legítimo, em conhecer factos da vida de personagens que, consciente ou inconscientemente, ou mesmo por força da natureza das relações sociais, se expõem à publicidade».
Refere ainda, em particular, que «a notoriedade das pessoas (…) pode resultar não apenas do cargo, das funções, da profissão ou do relevo social e público que alcançaram mas também de circunstâncias ocasionais, “como acontece, por exemplo, com as vítimas de um grande acidente ou os protagonistas e testemunhas de facto inusitado”».
Em qualquer caso, salienta o Conselho, «mesmo as pessoas revestidas de notoriedade conservam o direito à imagem relativamente à esfera íntima da sua vida privada, em face da qual as exigências de curiosidade pública têm de deter-se»[4].
Daqui pode extrair-se que a reserva da vida privada conhece limites mais ou menos alargados consoante a circunstância em concreto – de modo mais restrito e permanente no caso das chamadas figuras públicas (por força do cargo exercido ou das suas funções, em que a publicidade seja parte essencial da mesma); de modo pontual e em geral mais alargado no caso do cidadão comum que numa dada circunstância se veja envolvido num evento mediático. Mas seja em que circunstância for, há uma esfera íntima, privada, que se impõe como limite à observação exterior e a partir da qual não pode haver senão as exceções determinadas pelo próprio.
No âmbito desta exceção prevista pelo Código Civil, a propósito do exercício de certos cargos, impõe-se uma nota sobre a fotografia de elementos policiais no exercício das suas funções.
Sobre a matéria há que recorrer a Rocha de Brito[5], autor que explica que «a atividade policial desenrola-se sobretudo na via pública ou em locais abertos ao público, e decorrente desse facto sucede que os profissionais de polícia estão constantemente expostos aos inúmeros dispositivos tecnológicos que os cidadãos possuem, sendo que a lei vigente, a jurisprudência e a doutrina são unânimes em considerar que, na generalidade dos casos, não se verifica o crime de fotografias ilícitas (artigo 199º, n.º 2 do CP [Código Penal]) quando a obtenção de imagens, de qualquer cidadão (incluindo elementos policiais) é efetuada nestas circunstâncias»[6]. No entanto, salienta que «o facto de ser o uniforme que identifica os elementos policiais enquanto tal, não afasta a ilicitude daqueles que através da sua conduta, pretenderem exclusivamente, registar e/ou divulgar imagens de elementos policiais focando o seu rosto ou outros aspetos físicos distintivos da sua pessoa. Neste caso, não existe nenhuma causa de exclusão da tipicidade/ilicitude, visto que nenhum dos pressupostos do artigo 79º, n.º 2 do CC [Código Civil] está preenchido e, assim sendo, não pode ser levada a cabo a conduta de efetuar registo de imagens sem o consentimento do elemento policial»[7]. E conclui que «o cidadão tem legitimidade para capturar imagens de elementos policiais em serviço, sem o seu consentimento, sempre que a imagem destes esteja enquadrada na de locais públicos, abertos ao público ou quando constituam factos de interesse público de acordo com o disposto no artigo 79º, n.º 2 do CC, excetuando os casos em que haja “prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro” do elemento policial»[8].
Em síntese, poderá concluir-se que ao elemento policial assiste, como a outro cidadão nas mesmas circunstâncias, o direito de reserva quando a fotografia captada incida especificamente sobre o rosto ou outros elementos distintivos, abstraindo do contexto mais lato em que a sua intervenção se insere.
Como referido inicialmente, a lei prevê outras exceções para a utilização de retratos sem necessidade de consentimento, mas essas ficam para próximos artigos.
[1] Note-se que não é proibição de captação – este assunto será analisado mais adiante, no contexto da vertente criminal da fotografia.
[2] Esta questão será analisada com maior detalhe em momento posterior.
[3] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República 95/2003, de 06-11-2003, publicado no Diário da República – II Série, n.º 54, de 04-03-2004. Disponível em https://dre.pt/
[4] Citando Adriano de Cupis, Os Direitos da Personalidade, tradução de Adriano Vera Jardim e António Miguel Caeiro, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1961.
[5] Brito, Fernando Rafael Barca Rocha de, (2016) “Legitimidade da captura de imagem pelo cidadão de elementos policiais em serviço”, dissertação de Mestrado Integrado em Ciências Policiais, disponível em http://hdl.handle.net/10400.26/15531
[6] Op. cit., pág. 71.
[7] Op. cit., pág. 72.
[8] Op. cit., pág. 74.
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