
Personalidades da Fotografia – Jorge Molder, fotógrafo do eu e do outro
Dando continuidade à rubrica PERSONALIDADES DA FOTOGRAFIA, o Blogue do IPF apresenta um artigo assinado pelo investigador Luís Mendonça que em ”Jorge Molder, fotógrafo do eu e do outro”, esboça uma porta-de-entrada para a obra internacional do fotógrafo português de ascendência húngara, Jorge Molder.
Quem é Jorge Molder? Um agente secreto fazedor de imagens, um filósofo do corpo e da imagem, um ventríloquo de si mesmo, um perscrutador de indícios e um coleccionador de gestos. Será isso tudo, mas antes é um cidadão de ascendência húngara e com costela judia nascido em Lisboa em 1947. Licenciou-se em Filosofia e iniciou a sua actividade de modo mais público nos anos 1970, fotografando lugares, coisas e pessoas.
Só sensivelmente a partir de 1987, com “Auto-retratos”, Molder começa a produzir, de modo sistemático, séries fotográficas em que intervém. Não deixa, contudo, de fotografar objectos. Na realidade, toda a sua construção do eu promove um gesto de objectificação do corpo. O corpo como lugar de uma “performance” convulsa onde ressaltam todas as dúvidas e inquietações adstritas ao acto de fotografar: o que ou quem é o original? O que ou quem é fotografado? Para quem se fotografa?
Como se questiona Anabela Pereira a propósito de Molder, no artigo «Contrasting (power of) visual and textual discourses in art studies: a critical perspective», “o que há, para lá da mimesis [fotográfica]?” Onde acaba o auto-retrato e começa a auto-representação? Face a estas interrogações, importa citar o próprio Jorge Molder em entrevista ao jornal Público: “Gosto da ideia de deixar suspenso e em aberto. Na nossa vida há coisas que sabemos muito bem e há coisas que não sabemos, e vivemos bem conscientes dessa ignorância.” Que mundos são estes que se convocam a partir de um corpo estranho nascido, aparecido, revelado da escuridão? Que pose é esta que o anima sem quebrar a sua existência frágil, incerta? Como disse Jorge Molder em entrevista ao programa Fotografia Total da TVI, “eu vivo a instabilidade do retrato”.
Com efeito, Molder rejeita liminarmente a ideia do auto-retrato como motivo para a auto-descoberta ou o auto-conhecimento. A sua arte é, fundamentalmente, uma arte da carnação. Isto é, uma arte que encontra no ‘medium’ corpo uma maneira de produzir um qualquer efeito de desfasamento identitário. É o próprio Molder que confidencia, em entrevista realizada pelo fotógrafo John Coplans, publicada no livro “Luxury Bound”, que muitas vezes não se reconhece nas suas imagens. Este não-reconhecimento lembra um episódio de infância recordado por Delfim Sardo no seu ensaio publicado no livro “Jorge Molder: O Espelho Duplo”: “Molder conta [num texto de 1993] que, na sua infância, costumava mexer rapidamente os braços e as mãos em frente ao espelho, procurando surpreender um desfasamento entre si e o seu reflexo.”
Points of No Return 1994
Através do corpo, da imagem do seu corpo, Molder constrói a expectativa de uma cisão, de um corte identitário, entre o eu e o outro. É essa a potência estranha que o lugar do corpo encerra para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, no ensaio “Corpus”: “[o] corpo é o estrangeiro que está ‘acolá’ (o lugar de qualquer estrangeiro) porque ele está aqui.” Diria até que, desde a sua infância – a da sua vida como da sua arte – o corpo é sempre um outro em Jorge Molder. Lugar de encontro e potência de desencontro. Escreve ainda Nancy: “Um corpo é sempre ob-jectado de fora, a ‘mim’ e a outrem. Os corpos são sempre e antes de tudo outros – assim como os outros são sempre e antes de tudo corpos.”
Anatomia e Boxe 1996
Muitos autores gostam de associar este encontro-desencontro entre corpo e identidade a fenómenos de índole psicanalítica, tais como o histerismo ou o “unheimlich” – sendo que esse grande “estranho familiar” é, em Molder, o corpo. Escreve Delfim Sardo em “O Espelho Duplo”: “A sua obra tem sido construída dentro deste eixo de contradição interna, de uma estranheza que se manifesta na familiaridade. De uma estranheza que é o encontro do próprio.” O duplo no retrato marca a cisão que acontece em qualquer contradição: quem se mostra é e não é. Por um lado, o eu, por outro, o outro. Pela representação fotográfica de um eu carnado – mais carnado do que encarnado – Molder é o familiar e o estranho. O nativo e o estrangeiro.
“Não, não acho que um espelho possa determinar a minha singularidade. Isso é outra questão. Mas a verdade é que produz um efeito estranho, porque descubro alguém que, em certa medida, é um duplo. Reconheço-o. Reconheço certos traços que tenho a certeza que me pertencem mas, ao mesmo tempo, não me reconheço no espelho ou, se quiseres, nas imagens que produzo”, observa Molder a Coplans. Nas fotografias de Molder, várias são as encenações em que o corpo estilhaça como vidro, partindo-se em dois. A fotografia é duplicação, imagem de uma imagem, mas Molder aprofunda este abismo quando constrói duplicidades no seio dessa duplicidade imanente. Constrói personagens ante a câmara que vivem acossadas com a sua realidade de duplos. Elas confrontam-se com reflexos em espelhos e mesmo em fotografias.
“Também na sua obra, o espelho é a marca da transitoriedade, o testemunho do tempo, a marca da impermanência – e, como o próprio artista afirma, estas são as marcas das afinidades entre a fotografia, as águas e os espelhos”, conclui Delfim Sardo em “O Espelho Duplo”. A metáfora da fotografia como espelho é várias vezes reencenada. O espelho pode ser espelho, mas também pode ser mão, água e fotografia. “Esta imagem [do espelho fotograficamente re-presentado], reproduzida no espaço, é um ‘atractor’ – suga para dentro de si o nosso olhar, faz-nos, quase infantilmente, mergulhar na imagem”, escreve ainda Delfim Sardo.
Série Nox 1999
Série Nox 1999
Série Nox 1999
Colocado em abismo, num abismo de reflexos de reflexos de reflexos…, o rosto combate o rosto. O rosto como máscara, como a máscara que faz o eu: a identidade da máscara é a identidade do falso. Como dizia Pessoa, “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente.” O fotógrafo Jorge Molder participa no mesmo jogo de fingimentos.
Nele, o rosto e o corpo são arenas desse combate entre a identidade e a outridade, entre o conhecido e o desconhecido, entre a aparição e a desaparição, entre a vida e a morte. O “corpo como arena da transformação” (Delfim Sardo em “O Espelho Duplo”). O corpo é um outro e o outro é um lugar estranho habitado por uma inquietude de morte. O corpo é existir para a morte, acrescenta Jean-Luc Nancy. A solenidade das personagens de Molder é muitas vezes funérea. Elas arranjam-se para uma espécie de aparição última, dentro da pouca luz que ainda as vai salvando das trevas absolutas.
Série INOX 1995
Contribuição de Luís Mendonça