
Personalidades da Fotografia – Helen Levitt e o Mundo da Infância
Auto-retrato de Helen Levitt 1963
A rubrica PERSONALIDADES DA FOTOGRAFIA é assinada pelo investigador Luís Mendonça.
A fotógrafa Helen Levitt não pretendia produzir documentos sociais sobre a pobreza e marginalidade na cidade de Nova Iorque; ambicionava antes dar a ver a particular forma como os espaços e o movimento da cidade eram veiculados pelos seus mais sublimes intérpretes: as crianças. A rua pertencia-lhes e foi através delas, por elas, que Levitt se celebriza como uma “fotógrafa de crianças”, de tal modo que a sua primeira grande exposição acontecerá no MoMA em 1943 e terá como título Helen Levitt: Photographs of Children.
Se, por um lado, recusava a ideia de que nutria um especial sentimento pela cidade, mesmo tendo sido em toda a vida uma new yorker, por outro, afirmava: “As pessoas pensam que eu amo crianças, mas não, não mais do que qualquer pessoa. A diferença é que as crianças andavam pelas ruas”. O que se celebra, primeira e essencialmente, no seu trabalho In the Street é – o título não mente – a rua, não como algo muito preciso, geográfica e temporalmente, mas como uma “ideia de rua”, dada a maneira como se dá a ver e se perpetua num instante determinado pela câmera nas mãos de uma fotógrafa.

O estilo era documental, mas a fotografia combatia silenciosamente o documentalismo sociológico. Também silenciosa, quase inconsciente em todos os sentidos da palavra, será a relação que provoca entre cinema e fotografia. Se o filme In the Street nasce da fotografia de Levitt, a fotografia de Levitt também vai renascer com esse filme, ou não teria esta editado em 1987 um photo book com o título In the Street: Chalk Drawings and Messages New York City 1938-1948. Esta duplicação de títulos, esta “confusão” induzida entre os dois trabalhos, esclarece, na realidade, mais do que baralha. No cinema, Levitt e o crítico James Agee, com a preciosa ajuda da pintora Janice Loeb, vão mostrar a rua como um campo de batalha, sendo a apoteose, pico da excitação provocada pelo Halloween, a luta “todos contra todos” com meias cheias de farinha. Contra a agitação das crianças, que animam a rua, choca a passividade e inércia dos adultos.

A rua é mostrada pela solitária Levitt primordialmente como um playground, que se expressa tanto na acção das crianças como, mais acentuadamente, por contraste com o filme, nos vestígios dessa acção: precisamente, os desenhos e as mensagens a giz que inscrevem nas ruas e nos edifícios uma espécie de tatuagem natural da infância. Menos “brutas” que as fotografias de graffiti encontrados em Paris por Brassaï desde os anos 30, Levitt parece actualizar o interesse do seu mestre Walker Evans pelos néones e as mensagens publicitárias no gesto da criança que desenha directamente sobre a rua, interpretando-a como a pele da cidade. Lemos directamente nela a forma como as crianças transcrevem os sinais do seu entorno, sobretudo da cultura popular (acima de tudo, filmes e publicidade). “Elas querem ser como nos filmes, parte do espectáculo”, escreve Adam Gopnik na introdução ao livro Here and There de Levitt.

Sobre um cartaz, que podia fazer parte do portfólio de Walker Evans, uma figura toscamente desenhada de uma mulher de formas voluptuosas e cabelos encaracolados casa com outra fotografia onde se lê a mensagem “Rhoda has nice hair. Its the beautiful shade of blonde”. Num bairro multiétnico, composto maioritariamente por uma população hispânica e negra, estas imagens ganham um acrescido tom satírico. O mesmo podia ser dito a propósito das fotografias de desenhos onde se travam batalhas intemporais entre ódio e amor, rivalidade e amizade, guerra e paz. Na introdução que escreveu ao photo book In the Street, Robert Coles sublinha que “é um erro negar às crianças luxúria, avareza, truculência, egoísmo – e há pistas disto tudo nos desenhos de rua, não importa o deleite que podemos ter com um primeiro vislumbre”.
Em desenhos ou mensagens, estas imagens aparecem em Levitt como outdoors que expõem os sonhos, desafios, revoltas e angústias não só das crianças de Spanish Harlem como, extrapolando, de pequenas criaturas habitando qualquer morada no mundo. A fotografia e o cinema encontram-se quando, pelo simples facto de saírem à rua e manterem-se fiéis à imagem projectada pelos seus “achados”, desfazerem a imagem da criança amestrada e assexual de Hollywood.

Numa das fotografias mais célebres de Levitt, vemos um rapaz a levantar a saia de uma rapariga, enquanto esta se distrai na brincadeira com as amigas. A fotografia de Levitt insinua um movimento que se adivinha “a seguir” e, nesse sentido, o cinema namora sempre com a fotografia. O que Levitt procura é não congelar o “momento decisivo”, como o seu mestre Cartier-Bresson, mas, distingue Adam Gopnik, o “momento sugestivo”, que é “o momento entre acções”, isto é, aquele instante entre uma acção e uma reacção, um antes e um depois, instante prenhe de uma narrativa que se “supõe” poderosamente na imagem, como se Levitt estivesse a produzir nas ruas, enquanto fotógrafa, sugestivos stills de um filme a realizar.
Na sua colecção de imagens de desenhos infantis, Levitt volta a desenhar, mas através daqueles que “não sabem” desenhar, esses visionários diletantes chamados crianças. Fotografar crianças era já inscrever na sua arte, como giz na pedra, o gesto de um fotógrafo: “Na sua excitação, na sua confiança, e nos riscos que tomam, as crianças são parecidas com o fotógrafo que tira a sua fotografia”.
Com efeito, a intuição fotográfica da criança será a principal fonte de inspiração de Helen Levitt. Por elas, a sua fotografia – e o seu cinema depois dela – instaura uma arte amadora, em segunda mão, retrato cheio de vida e energia do éden perdido da infância.
Contribuição de Luís Mendonça