
Personalidades da Fotografia – Gordon Parks e a Condição Negra
Auto-retrato de Gordon Parks
A rubrica PERSONALIDADES DA FOTOGRAFIA é assinada pelo investigador Luís Mendonça.
Gordon Parks nasceu no Estado do Kansas em 1912 e ficou órfão aos quinze anos. Levou uma vida muito dura, enfrentando a pobreza e a discriminação racial. Parks decidiu combater a opressão com uma câmara e uma caneta. Tornou-se romancista, poeta, músico e fotógrafo. Foi um dos mais relevantes fotógrafos do seu tempo, responsável por algumas das imagens mais pungentes que lidam de frente com o problema do racismo na América.
No seu livro retrospectivo “Half Past Autumn: A Retrospective”, Gordon Parks escreveu: “O racismo ainda está aí, mas eu não vou deixá-lo destruir-me.” Comprou a sua primeira câmara em 1938 por apenas 7,50 dólares numa loja de penhores. Uma Voightlander Brilliant que serviu de arma, disse o próprio, para “usar contra um passado deformado e um futuro incerto”.
Um momento decisivo na sua vida aconteceu durante uma viagem de comboio: o jovem Parks foi exposto às fotografias da Farm Security Administration publicadas numa revista que encontrou perdida na carruagem. A Farm Security Administration (FSA) havia sido criada por Franklin Roosevelt para documentar as condições de vida dos agricultores espalhados pela América. Era uma via de mudança para a América.
Parks começou timidamente como fotógrafo de moda. A sua actividade levou-o a Chicago, onde progressivamente se começou a interessar pela realidade social da cidade. “Comecei a focar-me na margem sul da cidade, onde a pobreza enredava uma vasta população negra”, contou o fotógrafo no citado livro. Este trabalho vai chamar a atenção de Roy Stryker, fotógrafo responsável pela FSA. Em pouco tempo, Parks estava a fotografar ao lado dos seus ídolos, tais como Dorothea Lange, Ben Shahn e Russell Lee.
Foi para Washington em 1942, onde desenvolveu o seu trabalho como fotógrafo social com uma bolsa da FSA. Em Washington, Parks conheceu o lado mais negro do racismo na América. “Os restaurantes para brancos enxotavam-me para a porta dos fundos. Cinemas brancos recusavam-me a entrada. O tom dos empregados brancos na loja de Julius Garfinckel irritava-me. A roupa que eu esperava comprar não foi comprada. Não tinham para o meu tamanho – não importava o que queria.”

Roy Stryker foi como um mentor para Parks. Dizia-lhe que devia verter para as fotografias a sua experiência em Washington, não se limitando a retratar a intolerância branca. “A câmara torna-se uma arma poderosa quando usada de um bom modo”, disse-lhe. Stryker sugeriu a Parks que investigasse as causas profundas do racismo. Inspirado por estes incentivos, Parks começou a encarar de frente o problema que o perseguia ao longo da vida. A sua primeira fotografia tirada neste âmbito foi uma das suas mais poderosas. Era protagonizada pela empregada da limpeza que varria o chão da FSA, Ella Watson. Vemo-la contra a bandeira dos Estados Unidos, segurando com uma mão a vassoura e com a outra a esfregona. O título da fotografia, “American Gothic” (1942), era uma citação da famosa pintura de Grant Wood de 1930. Stryker ficou impressionado com a foto. Talvez demasiado impressionado: “Bem, estás a apanhar o jeito, mas essa fotografia pode despedir-nos a todos.”
Em 1944, Parks tentou (de novo) o mundo da moda. Na Harper’s Bazaar a entrevista de emprego correu bem até ao ponto em que lhe disseram que, lamentavelmente, não podia ficar porque não contratavam negros. Recomendado por Stryker, foi ao encontro de Edward Steichen que o reencaminha para a revista Vogue com uma carta de recomendação. Alexander Liberman, o mesmo que contratará William Klein, analisou o trabalho de Parks e deu-lhe uma oportunidade. Parks ficou ligado ao mundo da moda a partir daqui.


Em 1948, Parks propôs à Life uma série fotográfica sobre as guerras de gangues em Harlem e um conjunto de fotografias sobre moda. É contratado para fazer ambos os trabalhos. Parks seguiu o líder de um dos mais temíveis gangues do Harlem, Red Jackson. Fotografou bem de perto a violência das ruas: “Os adolescentes faziam juras de sangue para morrerem em conjunto”, contou Parks.

Outra imagem marcante produzida durante este período foi a do homem que emerge dos esgotos: “Man Peeking From Manhole”. Um ícone para a condição negra nos anos 40, que a remetida para o esgoto da sociedade. As suas imagens sobre a comunidade negra na América trouxeram-lhe um reconhecimento imediato. Na sequência deste sucesso, Parks foi enviado para Paris: “Paris tornou-se uma amante muito bela”. Inspirado pelos quadros de Degas, Picasso e Chagall, Parks foi apresentado ao poder da cor.


Parks atravessou vários pontos da Europa. Fez fotografias de touradas em Madrid. Visitou o Estoril, um dos destinos de férias favoritos dos monarcas europeus – este era o propósito da reportagem. A câmara de Parks acabou puxada pela realidade envolvente, a da pobreza do povo português. Por entre a classe alta, ela surpreendeu um povo de mão estendida “implorando pelo pão diário”. Parks testemunhou ainda a chegada histórica de Eisenhower a Paris, em 1951. Fotografou o enterro do General Pétain, em 1951, o que lhe mereceu o seguinte comentário: “Foi um adeus pouco heroico de um herói outrora abundantemente condecorado”.

Em 1956, o retrato que fez da vida de famílias negras no sul dos Estados Unidos, no Alabama, tinha o tom da escola da FSA. Numa das suas fotos mais impactantes, vemos uma mulher a beber de um chafariz “colored only”. Outro trabalho de Parks nesta altura tinha como objectivo documentar o crime por toda a América, começando em Chicago, a meca da droga, do homicídio e da corrupção. Aí produziu algumas das suas imagens mais duras. Todas fazendo uso da cor, que Parks aprendeu a dominar na qualidade de fotógrafo de moda. Mas desta vez a cor vinha acentuar, sem glamour, a brutalidade de cada cena. Brutalidade dos criminosos, mas também da polícia. “Um detective mostrou um toque de misericórdia durante uma invasão. Ele enrolou a marreta com uma toalha antes de atacar o suspeito com ela.”

Em 1961, Parks deu de caras com o cenário de maior pobreza que viu na vida. Na favela de Catacumba, periferia do Rio de Janeiro, produziu um diário fotográfico que tinha como protagonista um menino pobre da favela chamado Flávio da Silva. A reportagem que fez para a Life – um estrondoso sucesso! – foi seguida daquele que foi o primeiro filme de Gordon Parks, um documentário de 12 minutos chamado simplesmente “Flavio”, lançado em 1964.
A carreira de Parks no cinema não se ficou por aí. O realizador e actor de Hollywood John Cassavetes leu o seu romance autobiográfico “The Learning Tree”, publicado em 1965, e exortou Parks a transformá-lo num filme. “Obrigado, John, mas sabes bem que não existem realizadores negros em Hollywood – e receio bem que não haverá nenhum”, respondeu Parks ao desafio de Cassavetes, mas este não sossegou e marcou uma reunião entre Parks e Kenny Hyman da Warner Brothers.
Kenny Hyman propôs que Parks escrevesse e realizasse o argumento e ainda que compusesse a música. E, porque era o primeiro realizador negro em Hollywood e precisava por isso de protecção, que assumisse o lugar de produtor. O filme era um retrato amargo sobre a infância e o início de adolescência de um rapaz negro e a forma como este se foi apercebendo criticamente da sociedade que o rodeava.
Parks realizou apenas mais 8 filmes. Um deles foi um clássico instantâneo do ‘blaxploitation’: “Shaft”, o primeiro policial protagonizado por um negro, filme de estética crua e ‘cool’, rodado nas ruas de Nova Iorque. Recentemente ficou célebre o filme “12 Years a Slave”, obra que fez o também fotógrafo Steve McQueen entrar na história como o primeiro realizador negro a vencer o Óscar de Melhor Filme. Ora, Parks adaptou a mesma história de Solomon Northup em 1984, num telefilme com o título “Solomon Northup’s Odyssey”. Deste modo, ainda ressoa nos dias de hoje a luta exemplar desse homem de múltiplos talentos chamado Gordon Parks.
Contribuição de Luís Mendonça