
Larva
O desafio de escrever sobre fotografia é, também como a própria fotografia, um paradoxo.
Tanto para dizer, tanto para fotografar, que a decisão de apontar a ideia à caneta*, ou à objectiva** a um assunto, para não falar também de uma ideia, torna-se bastante complexo.
(*um primeiro apontamento saudosista analógico, visto estar sobre um teclado e uma janela de luz, onde letras são agora 0s e 1s);
( **ou o simples e primordial orifício estenopeico )
Vivemos com palavras na cabeça e assuntos nos olhos, constantemente.
Estou a tentar simplificar a minha ideia que a esta altura já deveria estar mais focada. É tão acessível escrever e fotografar, que se torna tão inacessível. (criando uma, desde já, utopia, pois não é assim tão acessível escrever ou fotografar)
Sinto-me tentado a não percorrer “apenas” a madrugada fotográfica ou o seu canto de galo, (não ler “cantar de galo”) pois além de não ter poder de síntese, prefiro vir para o terreno sem saber o que vou fotografar. Como um olhar que vai sendo aliciado pela luz sobre umas “simples e banais” conchas e fósseis, ou pelo acaso de uma borboleta que pousa sem ser numa flor.


E só por aqui poderia divagar tanto, fósseis e conchas do tempo, borboletas do tempo também. E ainda que presos no tempo, metamorfoseados sempre pelo nosso olhar anacrónico.
Aqui posso voltar a enquadrar o meu pensamento e voltar às “conchas e fósseis”, não divagando, mas sublinhando o seu autor e a data. Nesse mesmo ano, a 7 de Janeiro numa, chamemos, reunião privada, o seu processo fotográfico foi descrito, apresentado, mas somente a 19 de Agosto foi apresentado amplamente a Paris e ao mundo. Por isso, e assim sendo, 19 de Agosto é a data que celebramos para este marco da História, que veio transformar a própria História.
Mas sempre que abordamos esta data nunca me esqueço de uma frase que tanto contém:
“Não se está a celebrar nenhuma invenção, mas antes a cerimónia da sua divulgação.” (Pedro Miguel Frade,1989).
Uma frase que remete para a fotografia de Nikos Economopoulos e da borboleta, que já foi larva.
Antes dessa divulgação há tanto para contar. E até esta borboleta poder ser fossilizada em prata também. Uma vida inteira, e a continuar.
A constante metamorfose fotográfica, de quem a produz e de quem a consome. E sobretudo desta “nova espécie” de produtor-consumidor fotográfico, fruto de tecnologias economicamente acessíveis, fáceis de operar , e velozes na disseminação e partilha dos seus resultados visuais. Como dizia Mark Twain, “ a história nunca se repete, mas muitas vezes rima” e a empresa Kodak rima com a ideia que exponho 3 linhas acima. Na altura nós premiamos o botão e eles faziam o resto, hoje em dia nós fazemos tudo e no mesmo minuto. Certo que muitas destas fotografias permanecerão imaterialmente, sem concha, veredictos de fósseis digitais mal dão o primeiro grito (gosto). Na outra altura da rima o que eles faziam, o tal resto, era imprimir esses fósseis do tempo, dar-lhes uma concha, ou umas asas mais curtas. Não pretendo enaltecer ou menosprezar quer uma altura ou outra, são momentos diferentes da História, ou seja um é já História, outro é o nosso presente.
Aqui reenquadro o meu pensamento, e tento ver as borboletas no meio da manifestação e da tensão do momento. Volto a esta questão que tanta prata gastou, marcou, transformou, e a este que tanto pixel excita, marca, partilha. O outro tempo, também uma captação de uma fatia do presente, tinha logo como alma o passado, o recordar, o mais tarde recordar. Este tempo, o nosso, o de agora, esse presente que se capta, essa fatia do presente, é claro que se torna automaticamente passado, mas tenta demarcar o próprio presente, a sincronia do aqui e agora, não a nostalgia do “ali outrora” .
Não sei se viram também uma espécie de borboleta que pousou, espero que sim, desculpem se não, mas a turbulência do tempo é tanta, os olhares também
Nesta fotografia da coleção de Peter J. Cohen, existe também uma borboleta mas foi algo ocasional. Mas ela foi captada, para além da intenção do vernacular registo de vida. Essas vidas em que agora o coração já não bate.
Essa é uma das magias da fotografia, a de lembrar que mais ou menos filosoficamente nos perdemos no labirinto do real, aquilo foi, aquilo aconteceu. (independentemente de amplitude ou grau de encenação fotográfica… sim, de quem me fui lembrar agora… claro que sim, desse mesmo, desse “homem afogado”, que vou já colocar a representação da representação neste texto. ) E claro, o noema! “Isso-Foi” Esse a quem tratamos por tu, sempre que pressionamos o botão!


Antes que aponte a objectiva, desta vez da escrita para outra zona do tal labirinto onde voam e por vezes pousam borboletas, e onde nos olham estranhamente, e onde existem fósseis e conchas, relembro então o homem que também tratou o noema por “tu” mas o deixou, ao noema, num labirinto. (embora hoje em dia com drones seja possível ver bem a saída dos labirintos, tudo tem a ver com o ângulo de visão, o ponto da tomada de vista, a perspectiva – faço mais uma linha dentro deste parêntesis ao pensar no que será que aquela borboleta do Nikos, chamemos-lhe assim, vê… qual a sua perspectiva do mundo? Como será a “visão” do tecido do casaco do homem, tenso, onde tranquilamente, achamos nós, pousou?) Fotografou-se como um “homem afogado”, o coitado que se afogou, culpa do governo francês, numa altura onde Daguerre detinha o voo da luz à superfície da prata!!
A fotografia afinal não capta somente o real, mas o real que queremos tornar real através de uma fotografia. E tanto, também por aqui, nos poderíamos perder… “fake news”, e etc(s), mas lembrando que estas não são exclusivamente do nosso tempo, deste tempo, recordando (palavra tão fotográfica), algumas fotografias da R. Fenton na Crimeia em 1855 ou Timothy H. O’Sullivan e Alexander Gardner na guerra civil norte-americana, Guerra de Secessão, 1861 a 1865, e as da propaganda nazi e estalinista. E as polémicas, sobre e sub expostas, fotografias de Obama. Enfim, ficaríamos aqui horas com estes e outros registos onde a tentação do real é fotográficamente osmótica. Mas permitam-me apagar a borboleta de que se tem falado por aqui e lembrar o trabalho tão interessante e “orwalianamente” provocatório de Pavel M. Smejkal, com o recurso a tratamento digital e a re-contar a História, que por sua vez foi já contada, enquadrada, por uma óptica, numa perspectiva.


E outras tantas horas onde essa verdade, ainda que enquadrada, por um humano seja tão próxima da verdade que parece ir além da verdade, caso das inomináveis fotografias do holocausto, ou de Aylan Kurdi afogado, verdadeiramente e infelizmente afogado, numa crise migratória que parecemos não querer ver. É muito verdadeiro.
A luz, e sobre o querer ver, leva-me agora ao trabalho de Gerhard Richter e as suas “photo paintings”, onde buscou precisamente esse real, esses momentos de verdade, de verdades. E já agora um filme baseado sobre o seu percurso (com uma dose qb de spoiller ) onde “nunca deixes de olhar” faz todo o sentido, para “nunca deixes de lembrar” também! Realizado e escrito pelo cineasta Florian Henckel Von Donnersmarck, e aqui poderia também ficar bloqueado (depois perceberão melhor esta parte), não pela tela branca, mas pelo ecrã em branco e o compromisso de um artigo. E fico, mas sigo o meu caminho caótico, sempre à espera de uma borboleta. E ainda sobre o filme mencionado, sublinho a ideia “meu caminho”. Soa a poética “new age” que já nem “new” é, mas numa altura em que a fotografia cada vez mais é um produto com fins capitais e de pódium, uma máquina que pede cada vez mais fichas para jogar, o “caminho pessoal”, faz cada vez mais sentido.

E voltando a este discurso do real, do “verdadeiramente” real , do vernacular, da fotografia que colonizou sobretudo todo o séc. XX, essas frações do real, do “verdadeiro”, do “verdadeiro”com uma câmara apontada, ou do verdadeiro sem saber que a mesma existe. Da modificação da psique de quem posava para um momento que iria ser um papel fossilizado com vida de outrora. Ou da naturalidade de quem viaja no tempo e não sabe que foi transformado em fóssil, e/ou borboleta.


E o que pensar sobre o trabalho do tempo sobre os suportes e a intenção desses suportes em serem modificados? Impermanências impostas e supostas. Todos os acidentes fotográficos, todos os erros, que nunca pousarão no nosso ombro, o ombro do tempo, ou como podemos ver agora esse tempo marcado.



Antes que a borboleta voe, deixo uma referência para ver, ouvir e sobretudo pensar, aliás sobretudo espantar, sim espantar, continuar a espantar.
Uma referência que prometo, espantará!
Mas não espantem a borboleta, espantem-se com ela!
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/amateur-parte-i/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/amateur-parte-ii/
referências ao longo do artigo:
https://www.magnumphotos.com/theory-and-practice/nikos-economopoulos-behind-image/
https://www.magnumphotos.com/newsroom/conflict/robert-capa-d-day-omaha-beach/
https://www.interphoto.pl/exhibitions/pavel-maria-smejkal/
https://www.orwellfoundation.com/the-orwell-foundation/about/about-george-orwell/
https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2017/05/16/hippolyte-bayard-o-afogado/
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/278947
http://100photos.time.com/photos/nilufer-demir-alan-kurdi
https://www.joseluisneto.pt/en/01-08-00.html
https://www.imdb.com/title/tt5311542/
Luís Barbosa