Direito à Imagem (7) – Exceções à Necessidade de Consentimento
[Contribuição de Mário Serra Pereira]
A última exceção prevista no n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil é aquela em que o retrato seja enquadrado em lugar público, em facto de interesse público ou em situações que hajam decorrido publicamente.
O que é um lugar público?
Existem diferenças entre o que seja um lugar público e um lugar de acesso ao público.
O primeiro é aquele que se destina ao público, sendo um bem comum no qual existe um direito pleno de ir e vir. Enquadram-se neste conceito as ruas e avenidas, praças e outros espaços de lazer abertos e sem delimitações.
Contudo, existem lugares públicos com restrições de acesso e circulação, como sejam edifícios públicos, escolas, hospitais e outros. Nestes locais, ainda que de propriedade pública, podem ser impostas limitações no acesso e circulação por várias razões, nomeadamente de segurança ou saúde pública.
Já os locais de acesso ao público são, em geral, propriedade privada mas destinam-se a ser frequentados pelo público. Aqui vigoram as regras determinadas pelos respetivos proprietários ou gestores do espaço e o acesso é facultado mediante o preenchimento de alguns requisitos, como por exemplo o pagamento de um ingresso ou algum tipo de consumo. Neste caso encontram-se centros comerciais, recintos desportivos de clubes, restaurantes, habitações, escolas privadas.
Facto de interesse público
Não existe uma definição do que seja um «facto de interesse público», genericamente aplicável a todas as situações, sendo necessária a sua aferição caso a caso. Tal conceito pode constar de lei específica ou, mais comumente, decorrer do entendimento que o julgador vier a fazer em concreto.
Com relevância para a fotografia, afigura-se que o conceito de facto de interesse público deve ser reconduzido à utilidade social, ao valor que na imagem em concreto se procurou captar e que possa ser do interesse da comunidade em geral. Não basta haver um interesse do público numa dada situação (como é o caso da fotografia dita paparazzi, frequentemente mais no interesse voyeur do público do que propriamente informativo), é necessário que o facto retratado seja relevante para a vivência social e apresentado com respeito pela verdade, constituindo tal um verdadeiro interesse público (o que pode ter diversas implicações para o fotógrafo, como por exemplo a simples escolha do ângulo de tomada da imagem ou o tipo de lente utilizada).
A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça[1] entende que «ocorrendo conflito entre os direitos fundamentais individuais – à honra, ao bom nome e reputação – e a liberdade de opinião e de imprensa, não deve conferir-se aprioristicamente e em abstrato precedência a qualquer deles, impondo-se a formulação de um juízo de concordância prática que valore adequadamente as circunstâncias e o contexto do caso». Por outro lado, julga ser lícita a publicação de artigos de opinião tendo subjacentes aspetos de relevante interesse público, envolvendo questões financeiras com reflexos importantes para uma autarquia. E, assim, considera que «a publicação de uma fotografia (…) pessoa de notoriedade local, envolvida num assunto de relevante interesse público, e obtida aquando de reunião pública, realizada em Câmara Municipal, em que (…) participou como advogado» não ofende o seu direito à imagem.
Factos que hajam decorrido publicamente
Eventos que decorram em locais públicos ou de acesso público (e nos quais não seja imposta uma qualquer limitação à captação de imagens) podem – genericamente – ser fotografados. Neste pressuposto, é legítimo presumir que quem participe nesses eventos saiba de antemão que poderá ser fotografado nos mais diversos contextos.
Por acórdão de 16-01-2007, no âmbito do Processo 5344/06 5ª Secção, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o registo de imagens fotográficas recolhidas na via pública é insuscetível de beliscar qualquer direito pessoal, por não corresponder a qualquer intromissão na vida privada[2]. No mesmo sentido, informa aquele Tribunal, tinha sido anteriormente decidido no âmbito do processo 8671/04-3ª Secção, em 26-01-2005[3].
E o Tribunal da Relação de Guimarães é elucidativo nesta matéria[4].
Em 16 de Setembro de 2006, uma menor, participou no desfile etnográfico enquadrado na tradicional romaria de Ponte de Lima, conhecida por “Feiras Novas”, que atrai àquela vila minhota milhares de visitantes. A romaria em questão é objeto de cobertura de órgãos de comunicação social, quer de âmbito nacional quer regional. No âmbito da referida cobertura, a menor foi fotografada por um fotojornalista e a imagem foi utilizada numa edição do jornal “Alto Minho”, em reportagem dedicada às “Feiras Novas”. Em Setembro de 2007, a empresa exploradora do supermercado “Intermarché” de Ponte de Lima usou a mesma imagem num folheto promocional. A utilização da imagem da menor no folheto promocional foi feita sem o consentimento dos pais. O folheto promocional do “Intermarché” foi distribuído não só no supermercado, mas também pelas caixas de correio das freguesias do concelho de Ponte de Lima e chegou ao conhecimento de alguns amigos, familiares e dos pais da menor. No folheto a imagem da menor foi colocada ao lado de uma promoção a pão. Os colegas de escola da menor troçaram da sua imagem no panfleto, apelidando-a de “Padeirinha”. Em consequência disso, a menor sentiu-se envergonhada e faltou à escola durante alguns dias.
O Tribunal entende que não existiu ilicitude na captação de imagens levada a cabo pelo fotojornalista, uma vez que o evento decorreu publicamente e merece a cobertura de órgãos de comunicação social de âmbito nacional e regional, o que aponta inequivocamente para o carácter não furtivo do registo fotográfico.
Poderia colocar-se um eventual ilícito na venda das imagens pelo jornal ao supermercado, mas o Tribunal entendeu que não se vislumbra a razão legal de tal impedimento, que cercearia ao jornal a possibilidade de colher os frutos da sua própria atividade. Aliás, interrogando-se, o próprio Tribunal não vislumbra um ilícito nem nesta venda nem na eventual organização de um livro com as melhores e mais expressivas imagens do desfile e que fosse colocado à venda.
O único ilícito que o Tribunal considera é o da utilização feita pelo supermercado, ao inserir a imagem num folheto publicitário, destacando-a do conjunto em desfile em que a menor que estava inserida, deixando de estar enquadrada no ato público no decurso do qual foi captada. Por este motivo, o supermercado foi condenado no pagamento de uma indemnização à criança e seus pais.
Questão mais controversa é aquela em que o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que «(…) a fotografia de um menor, tirada no páteo de colégio, em dia festivo e com a presença de muitas pessoas, não carece de consentimento para ser reproduzida em cartazes. (…) A reprodução feita nos seus cartazes, pelo Partido Comunista, de uma dessas fotografias não ofende o direito à imagem, por se tratar de facto que decorreu publicamente – art. 79.º, n.º 2 do C. Civil. (…) Para a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais é necessário que estes tenham gravidade e, assim, mereçam a tutela do direito – n.º 1, do art. 496.º do C. Civil»[5]. Neste caso, o Tribunal entendeu que o facto decorreu publicamente, tornando lícita a captação e utilização da fotografia.
Não se discutiu neste caso se houve a exploração abusiva para fins políticos, mas, entende Capelo de Sousa[6] que «o facto de o cartaz em causa integrar as imagens em grupo de treze crianças de um colégio, de tenra idade, com a legenda “…e o sol brilhará para todos nós”, não indiciará (…) ilicitude, o que não aconteceria se se tratasse da divulgação nos mesmos termos de um retrato individual ou de um retrato de grupo muito circunscrito, com as fisionomias mais individualizadas e mais definidas, face ao formato do retrato, e mais estabilizadas em função da idade». Naturalmente, trata-se de uma situação fluída, que carece em absoluto de ser vista em concreto no caso de situações similares que se venham a colocar ao fotógrafo.
Em jeito de reflexão final, pode afirmar-se que uma mesma imagem poderá ser utilizada sem consentimento prévio por se enquadrar numa ou em várias exceções previstas no n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil. Podem igualmente configurar-se situações de fotografias que não sejam utilizáveis num contexto, mas possam ser noutro.
[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 3017/11.6TBSTR.E1.S1, de 13-07-2017, disponível em www.dgsi.pt
[2] Cf. Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=3917&codarea=57
[3] Loc. Cit.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 453/08.9TBPTL.G1, de 02-03-2010, disponível em www.dgsi.pt
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 0012348, de 19-10-1977, disponível em ww.dgsi.pt
[6] SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de, O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, reimpressão, 2011, pág. 252.
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