
Covid-19: impacto histórico e emotivo da fotografia de reportagem
“No fundo a fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo
estigmatiza, mas quando é pensativa.”
Roland Barthes
A fotografia está frequentemente relacionada com a ideia de documento. Isto revela que a fotografia dá testemunho de uma realidade e, futuramente, serve para invocar a existência dessa mesma realidade. No entanto, o uso da fotografia como fonte histórica é algo recente, pois, até há pouco tempo, servia maioritariamente de ilustração, como prova que legitimava uma afirmação textual. A sua incumbência era apenas tornar transparente uma verdade, já constatada por textos escritos.
Porém, desde que a fotografia foi inventada tornou-se claro que a sua aplicabilidade viria a mudar a história do mundo, fornecendo a todos um instrumento de testemunho e monumentalização do real. Atualmente quase todos possuímos equipamentos que nos permitem ser jornalistas amadores de diversas iniquidades e transmiti-las instantaneamente ao conhecimento geral. A verdade é que nem sempre foi assim. Graças à imprensa, através do trabalho de diversos fotojornalistas ao longo dos anos, recebemos informação que se tornaria histórica, como imagens inéditas de guerras ou atentados terroristas.
Hoje, sabemos que uma imagem pode torna-se, ela mesmo, história de um acontecimento. Em setembro de 2015, com a fotografia do corpo da criança síria Aylan Kurdi, realizada por Nilüfer Demir, verificámos uma comoção mundial quando a imagem foi capa de quase todos os jornais do mundo. Provocou choque, abalo e controvérsia. O tempo apresenta, neste caso, um papel basilar, do ponto de vista emocional, uma vez que o registo é associado à tomada de consciência da mudança, do desaparecimento ou até da morte. Quando pensamos na palavra documento, está ainda implícita a ideia de unicidade: o seu valor é maior quando a fotografia é exclusiva.

Numa reportagem do Observador, de 6 de abril de 2020, sobre a realização de funerais em tempo de Covid-19, em Portugal, pode ler-se, acerca da sala mortuária: “A sala, com uma temperatura interior de -2ºC, tem uma bancada não muito diferente da de uma cozinha perfeitamente banal (…). Ao lado dessa bancada há uma plataforma metálica, usada para tratar os corpos, mas não os de doentes que tenham morrido de Covid-19. Esses são apenas despidos, desinfetados e colocados em dois sacos, também sujeitos a desinfeção. O processo, muito duro até para quem já está habituado a fazê-lo, repete-se em relação ao caixão, que tem de ser limpo por dentro e por fora.”.
A reportagem fotográfica de João Porfírio, que acompanha este relato da jornalista Ana Cristina Marques, é uma prova autêntica da situação que se vive no país. As palavras chocam, mas as evidências visuais transportam para o espetador uma sensação real de medo e impotência. De acordo com John Berger, na sua obra Entender uma Fotografia, “cada fotografia é um meio de verificar, confirmar e construir uma visão total da realidade”. Imagens atuais, como esta, mostram que a fotografia ainda pode ser usada para clarificar, tendo bem presente o seu carácter militante.
A Covid-19 impôs uma panóplia de rituais, que no passado seriam impraticáveis. A distância física fez com que as imagens, as videoconferências e as partilhas e interações nas redes sociais se transformassem em grandes canais de comunicação. A fotografia, através do retrato, por exemplo, sempre teve o papel de eternizar momentos felizes, moldando as nossas memórias. Instantes esses que, sem ela, perante a fugacidade e a imprecisão da vida, se tornariam passageiros. A imagem trouxe o mundo como ele é. O real sem filtros, sem subterfúgio, da sua faceta mais prazerosa à mais impactante. Dessa forma, surpreendentemente, a fotografia consciencializa.
As imagens fotográficas informativas, com a sua linguagem estética própria, mais objetiva, carregam uma hermenêutica sobre as práticas sociais e as suas representações. Mais tarde, podemos recorrer a provas imagéticas e analisar aspetos consideráveis da memória coletiva. Isto acontece porque temos a capacidade de olhar para a fotografia como algo que permite construir conhecimento, sendo também fonte histórica. Quando retratamos fotograficamente, por exemplo, o olhar e a disposição dos profissionais de saúde e de quem está na linha da frente ao combate pandémico, possibilitamos um desejo de eternizar a condição humana.
Assim, através do registo fotográfico, despertamos sentimentos de medo ou angústia, transformando a nossa perceção daquela profissão específica. Estamos perante um olhar que não é imparcial, mas que imerge no outro, precisa a dimensão de um determinado evento.
“A imagem, tal como a história, não ressuscita absolutamente nada. Mas ela
«redime»: ela salva um saber, ela recita apesar de tudo, apesar do pouco que
pode, a memória dos tempos.” – Didi-Huberman

No Jornal Público, numa peça de 31 de Janeiro de 2021, assinada por Fernando Peixoto e com fotografias de Mário Cruz, lê-se: “Neste «teatro de guerra faz-se como e pode fazer, identifica-se o corpo, manda-se fotografia à família, elimina-se o ritual do funeral, o velório, o acompanhar do corpo ao cemitério ou ao crematório, a missa, o fechar da urna.” Esta história, contada através das palavras de Artur Palma, proprietário de uma agência funerária na Amadora, ilustra que, no advento do coronavírus, podemos descobrir num olhar fotografado, uma história que poderá ser contada posteriormente. Existe a possibilidade de mostrar, através de imagens, a relação simbólica entre as pessoas, os objetos e os locais. Retratar objetivamente os conflitos e as relações de força no interior de uma sociedade.
Mesmo sabendo que a imagem de reportagem está ligada à produção mediática, que tem como pilares a comunicabilidade rápida e descomplicada, e que, por isso, a forma como chega ao público está, maioritariamente, relacionada com a ideia de eficiência, não podemos esquecer que a profissão procura em vários momentos invocar uma racionalidade do espetador. A imagem tem o poder de conduzir o nosso olhar para significações. Com a ajuda do texto fotográfico, numa notícia, o leitor consegue aceder ao lado invisível dos signos. A partir dela, conseguimos identificar uma época ou ocasião, espacial e temporalmente, assim como interpretar e analisar a sociedade retratada – função de acentuada utilidade histórica.
Bibliografia / Webgrafia
BARTHES, Roland. A câmara clara, Edições 70, Lisboa (1981)
BERGER, John. Entender uma Fotografia (1974)
DIDI-HURBMAN, Georges. Imagens apesar de tudo (2012)
TRACHTENBERG, Alan. Ensaios sobre fotografia: de Niépce a Krauss – Ed. Orfeu
Negro, Lisboa, 2013
https://observador.pt/especiais/reportagem-os-funerais-sem-despedida-e-sem-abracos/
https://observador.pt/especiais/cheguei-a-fazer-18-chamadas-para-receberem-um-doente-nosso-em-uci-uma-manha-no-combate-a-covid-19-nas-caldas-da-rainha/
https://www.publico.pt/2021/01/30/sociedade/noticia/covid19-distanciamento-morte-frio-ultimo-adeus-1948644
João Marcelino