O Respeito pelo Direito à imagem da Pessoa Retratada (6) – Exceções à Necessidade de Consentimento
[Contribuição de Mário Serra Pereira]
Vejamos agora mais algumas exceções previstas pelo Código Civil em matéria de utilização do retrato de alguém sem necessidade de consentimento.
Exigências de polícia ou de justiça
Genericamente, os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção[1]. O suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de um conjunto de documentos ou meios que a lei prevê[2] e, na impossibilidade absoluta de o fazer os órgãos de polícia criminal podem conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. Neste contexto, podem ser tiradas fotografias ao suspeito para efeitos da sua identificação – e utilizadas sem necessidade do seu consentimento.
De igual modo, noutras circunstâncias, podem ser captadas e utilizadas sem consentimento dos retratados fotografias suas. Vejam-se os casos de uma operação de vigilância de suspeitos, devidamente sancionada por um magistrado, em que são captadas fotografias de pessoas em situações ilícitas, ou a circunstância de uma vítima de violência que se apresenta num hospital para tratamentos e é fotografada para efeitos de prova futura das agressões sofridas.
Finalidade científica
Um médico especialista em cirurgia maxilofacial, que se dedica à reconstrução do rosto de pacientes com lesões graves e fotografa todo o processo de tratamento com o objetivo de documentar a situação original e a final poderá utilizar sem necessidade de consentimento as fotografias captadas no contexto de uma publicação científica em que explique a sua técnica de abordagem, para benefício de outros especialistas e, a final, para o bem comum.
Naturalmente que é uma situação que deverá ser vista de modo casuístico, porquanto estão em causa circunstâncias delicadas, que envolvem lesões ou deformidades que podem provocar constrangimento do retratado. Porém, havendo o cuidado de circunscrever a situação ao seu essencial, a finalidade pretendida poderá justificar a utilização das imagens em questão.
Finalidade didática
De igual modo, as fotografias em questão poderão ser utilizadas pelo referido médico numa aula que ministre a formandos daquela especialidade, de modo a ministrar os conhecimentos necessários ao exercício futuro da profissão. Mais uma vez, a finalidade em presença e o contexto contido de utilização permitem ao médico o uso das imagens sem necessidade de consentimento prévio do retratado.
Finalidade cultural
Esta é uma exceção que porventura terá maior interesse para os fotógrafos que não façam trabalho específico nas áreas anteriormente referidas e que ainda assim pretendam a divulgação do seu trabalho. Naturalmente, deverá ser colocado todo o cuidado na contextualização deste tipo de exposição de retrato.
Por exemplo, uma câmara municipal promove um evento fotográfico que visa documentar os mercados locais ou os locais de convívio popular, como centros recreativos ou simplesmente as tasquinhas de bairro. Para o efeito lança o desafio aos fotógrafos que queiram participar e no final organiza uma exposição e promove a publicação de um livro. Este contexto de utilização dos retratos encontra-se legitimado pela seriedade do propósito e pela autoridade pública promotora.
Noutra circunstância, um fotógrafo dedica-se à recolha, ao longo de vários anos, de fotografias de peregrinos a locais de culto religioso em Portugal. Decide publicar em livro os seus melhores trabalhos mas não dispõe de autorização das pessoas retratadas nem tem forma de a recolher. Porém, a edição e publicação do livro é apoiada por um jornal de grande expansão nacional, conferindo-lhe um caráter de seriedade no propósito, inerente à credibilidade do órgão de comunicação. Igualmente, escrevem artigos introdutórios figuras de relevo nacional ou na área em questão, aludindo à temática e aos retratos em si. Fica de alguma forma criado o contexto de interesse sério e justificado que a lei prevê.
Noutro exemplo, tomemos como referência a exposição «Murmúrios do tempo»[3], em que foram expostas fotografias de arquivo da Cadeia da Relação do Porto. Estão em causa retratos de detidos naquela cadeia (onde hoje se encontra sediado o Centro Português de Fotografia) que venceram o tempo e subiram à categoria de arte. Naturalmente que o tempo decorrido entre a captação das imagens e a sua utilização não permite a obtenção de autorização dos retratados, uma vez que todos faleceram entretanto.
Tratando-se de fotografias de pessoas em circunstâncias muito particulares da sua vida (foram presos por algum crime cometido), apenas poderiam ser utilizadas sem necessidade de consentimento no contexto para o qual foram tiradas – finalidade de justiça. O seu uso sem consentimento poderia legitimar qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido, segundo esta ordem[4], a proibir a exposição[5]. Porém, considerando o tempo decorrido, o modo como a sociedade olha para quem pratica um crime e atento todo o contexto criado[6], pode entender-se que está excecionada a utilização destes retratos na sua exibição pública.
[1] Cf. n.º 1 do artigo 250.º do Código de Processo Penal – Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e respetivas alterações, disponível em https://dre.pt/ – versão consolidada com as atualizações entretanto introduzidas em https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/34570075/view
[2] Cf. n.os 3 a 5 do artigo citado. Esta matéria será abordada mais adiante em detalhe.
[3] Centro Português de Fotografia, Porto, http://www.cpf.pt/exposicoes_passadas.htm
[4] Cf. n.º 1, parte final, do artigo 79.º e o n.º 2 do artigo 71.º, ambos do Código Civil.
[5] Por estar em causa uma situação de exceção à exceção prevista no n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil, como veremos adiante aquando da apreciação do n.º 3 do mesmo artigo.
[6] A exposição em questão não se limitava a apresentar os retratos sem mais, procurou contextualizar as situações em concreto, as condições de detenção, a realidade social inerente e todo um conjunto de outros fatores que tornam um retrato em algo mais do que a simples fotografia de um detido.
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